
Apesar de sua biodiversidade única e importância ecológica, a Caatinga tem menos de 2% de sua área sob proteção integral e enfrenta um avanço alarmante da desertificação. No Dia Nacional da Caatinga, celebrado em 28 de abril, o alerta é claro: o único bioma exclusivamente brasileiro está cada vez mais ameaçado. Com menos de 2% de sua extensão protegida por Unidades de Conservação de proteção integral, a Caatinga assiste à perda acelerada de suas florestas e espécies endêmicas enquanto enfrenta o avanço da desertificação e a pressão de atividades humanas como a agropecuária e a mineração.
O bioma, que ocupa cerca de 10% do território nacional e abriga uma biodiversidade única, segue invisível para a maior parte das políticas públicas ambientais e sofre com o avanço do desmatamento, da desertificação e da degradação de seus ecossistemas. A Caatinga perdeu quase metade de sua vegetação nativa e enfrenta uma crescente ameaça à sua fauna e flora endêmicas.
Bioma ocupa cerca de 10% do território nacional e abriga uma biodiversidade única
Divulgação/AgênciaSenado
A Caatinga abriga mais de 3 mil espécies de plantas e aproximadamente 1.800 espécies de animais, sendo muitas delas exclusivas desse bioma. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o bioma já perdeu cerca de 8,6 milhões de hectares de vegetação nativa entre 1985 e 2023 — o equivalente a 14% de sua cobertura original.
Apesar da sua importância, a Caatinga segue sendo alvo de desinformação e de estigmas que dificultam sua preservação. Para Daniel Fernandes, coordenador geral da Associação Caatinga, a desvalorização histórica do bioma contribui diretamente para a falta de políticas públicas eficazes.
“Historicamente a Caatinga passa por um processo de desvalorização por vários aspectos, dentre eles pela falta de conhecimento da riqueza biológica e cultural da Caatinga. Há uma imagem estereotipada que retrata a Caatinga como um ambiente pobre em biodiversidade e caracterizado apenas pela escassez hídrica. Esta visão estigmatizada reforça a imagem distorcida do bioma e o torna invisível em termos de políticas públicas”, diz Daniel.
O bioma já perdeu o equivalente a 14% de sua cobertura original
Divulgação/Ibama
De acordo com Daniel, o Art. 225, § 4º da Constituição Federal reconhece os biomas brasileiros com Patrimônio Nacional, mas o legislador constituinte não inclui a Caatinga. “Por si só este aspecto demonstra a desvalorização da Caatinga”, comenta.
Biodiversidade ameaçada
A Caatinga é um dos biomas brasileiros mais vulneráveis às mudanças climáticas e um dos menos protegidos. De acordo com o Relatório Anual de Desmatamento do MapBiomas, publicado em 2024, a Caatinga foi o terceiro bioma mais desmatado do país em 2023.
Mapeamento dos incêndios em área de Caatinga nos últimos 25 anos
MapBiomas Brasil
Além do desmatamento para a expansão agropecuária e mineradora, o bioma também sofre pressão da implantação de grandes empreendimentos de energia solar e eólica. Em 2023, o desmatamento associado a esses projetos aumentou 24% em comparação a 2022.
Os estados da Bahia e Ceará foram os campeões de desmatamento com um incremento de um ano para o outro de 34% e 28% respectivamente. Na Bahia, segundo estudo do Inpe, pela primeira vez foi identificada uma região de clima árido no Brasil, o que indica falta crônica de umidade e escassez permanente de oferta de água.
“O desmatamento na Caatinga é um dos problemas crônicos que acelera a perda de biodiversidade a altera a dinâmica do fluxo de serviços ecossistêmicos associados à floresta em pé, como segurança hídrica e regulação climática, por exemplo”, explica Daniel Fernandes.
Segundo o coordenador da Associação Caatinga, os incêndios florestais e caça e o tráfico de animais silvestres também têm contribuído para a perda de biodiversidade ao longo dos últimos anos e agravamento da crise climática. Muitas espécies correm risco de extinção em decorrência destas atividades criminosas como, por exemplo, o tatu-bola (Tolypeutes tricinctus), o soldadinho-do-araripe (Antilophia bokermanni), a onça-parda (Puma concolor) e muitos outros.
O tatu-bola corre perigo de extinção em decorrência destas atividades criminosas
Samuel Portela
Em paralelo, espécies invasoras como a planta trepadeira unha-do-diabo (Cryptostegia madagascariensis), introduzida da África, têm se espalhado rapidamente, sufocando a vegetação nativa e formando verdadeiros desertos verdes.
O bioma abriga aproximadamente 3.150 espécies de plantas com flores, das quais cerca de 720 são endêmicas. Entre os animais, destacam-se 386 espécies de peixes (sendo 203 endêmicas), 98 espécies de anfíbios (20 endêmicas) e mais de 548 espécies de aves, com cerca de um terço exclusivo da região.
O desequilíbrio ambiental causado pelo desmatamento e pela caça impacta diretamente a oferta de serviços ecossistêmicos, como a polinização, a regulação climática e a segurança hídrica, fundamentais para o bem-estar humano e para a resiliência dos ecossistemas.
“Há um risco de extinção destas espécies caso não haja diminuição da pressão de desmatamento e de caça. Para isso é necessário ampliar os esforços de proteção da Caatinga, criando mais Unidades de Conservação, promovendo a restauração florestal e fiscalização. A educação ambiental também é um caminho para reversão deste cenário atual”, alerta o coordenador da Associação Caatinga.
Desertificação avança e ameaça o semiárido
A desertificação é outro grande desafio que ameaça o futuro da Caatinga. Atualmente, cerca de 13% do bioma já se encontra em estágio avançado desse processo, como mostra o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélite da Universidade Federal de Alagoas. No Ceará, por exemplo, mais de 90% do território é de Caatinga, e toda essa área é suscetível à desertificação.
Vegetação da caatinga está adaptada ao clima seco, mas o processo de desertificação remove a cobertura do solo e dificulta a regeneração das plantas.
Celso Tavares/G1
A degradação da cobertura vegetal, associada à agropecuária, mineração, queimadas e expansão de projetos de energia, acelera a perda de biodiversidade, empobrece o solo e compromete a qualidade de vida das comunidades locais.
O implacável avanço do desmatamento contra as florestas da Caatinga tem inúmeras consequências: êxodo rural, empobrecimento do solo, redução da biodiversidade, extinção de animais e plantas, aumento da temperatura global, piora na qualidade de vida da população, redução da umidade do ar, assoreamento de rios, lagos e riachos e além, é claro, da própria desertificação
A criação de novas Unidades de Conservação de proteção integral na Caatinga enfrenta diversos obstáculos, entre eles a ausência de vontade política, pressões econômicas e a falta de recursos para indenizar proprietários de terras. Além disso, há carência de investimentos na gestão das unidades existentes, o que dificulta a elaboração e implementação de planos de manejo e a integração com comunidades locais.
A Associação Caatinga atua na conservação e valorização do bioma por meio de sete eixos temáticos, que incluem apoio à criação de áreas protegidas, restauração florestal, disseminação de tecnologias sustentáveis, educação ambiental, comunicação, incidência em políticas públicas e incentivo à pesquisa.
O solo argiloso, típico do semiárido brasileiro, racha quando seca.
Celso Tavares/G1
Entre os projetos desenvolvidos está a Reserva Natural Serra das Almas (RNSA), no Ceará, reconhecida pela UNESCO como o primeiro Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Caatinga. A instituição também promove o fortalecimento da bioeconomia, o desenvolvimento comunitário e a adaptação das populações locais às mudanças climáticas.
Para Daniel, entre as ações apontadas como necessárias para reverter o processo de degradação da Caatinga estão a ampliação da quantidade de Unidades de Conservação, o fortalecimento da fiscalização, a promoção da restauração florestal e o incentivo a práticas agrícolas regenerativas de baixa emissão de carbono.
Também é fundamental investir em tecnologias sociais que garantam produção de alimentos saudáveis, coleta e armazenamento de água da chuva, saneamento rural e geração de renda para as comunidades.
“A sociedade também é responsável pela manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Valorizar e proteger Caatinga é um dever nosso. Cobrar a implementação de políticas públicas que contribuam para a proteção do bioma também é um papel da sociedade civil organizada”, finaliza o coordenador.
Valorizar e proteger a Caatinga é uma responsabilidade coletiva. A sociedade, especialmente fora do semiárido, também deve cobrar a implementação de políticas públicas voltadas à preservação do bioma, reconhecendo seu valor para a biodiversidade, a segurança hídrica e o enfrentamento das mudanças climáticas.
A Caatinga, que abriga mais de 30 milhões de brasileiros, é um patrimônio natural que precisa ser urgentemente valorizado e protegido para garantir a vida, o bem-estar e a resiliência das gerações presentes e futuras.
*Texto sob supervisão de Lizzy Arruda
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