De 215 denúncias de violência contra pessoas LGBTQIA+ no Alto Tietê, em 38% dos casos o agressor tinha vínculo afetivo com a vítima


Dados são do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em 2024. Alguns moradores do Alto Tietê, que pertencem à comunidade LGBTQIA+, relataram momentos de violência que já sofreram. Gilson Gomes Coelho, doutor em Psicologia, explica que a LGBTfobia é um mecanismo de produção de ódio coletivo e estrutural. Então, o assunto precisa ser debatido em todos os lugares. De 215 denúncias de violência contra pessoas LGBTQIA+ no Alto Tietê, em 38% dos casos o agressor tinha vínculo afetivo com a vítima
Niranjan Shrestha/AP
“Relação”. Segundo o dicionário Michaelis, o termo significa “ligação que existe entre pessoas, coisas ou fatos”, “certo grau de semelhança” e, também, “vínculo de caráter profissional, afetivo etc”. Entretanto, o cenário parece diferente quando se trata da população LGBTQIA+, já que – muitas vezes – a violência parte de quem menos se espera: pais, irmãos, namorados e até amigos (leia alguns relatos abaixo).
“A LGBTfobia produz uma expulsão cíclica de lugares extremamente importantes para o sujeito: família, escola, igreja. Em torno desse sistema, se orquestra toda uma formatação de vida em sociedade que coloca essas pessoas em uma condição de ‘animalização’. Isso impacta no aspecto subjetivo, no modo como o sujeito compreende os seus direitos”, afirma o pesquisador, professor e doutor em psicologia, Gilson Gomes Coelho.
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Segundo um levantamento feito pelo g1 com base nos dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Disque 100 registrou 215 denúncias de violência contra pessoas LGBTQIA+ no Alto Tietê em 2024. Deste total, em 82 casos o agressor era uma pessoa próxima à vítima. Ou seja, em 38,1% dos casos, a violência partiu de uma pessoa com quem a vítima tinha uma relação de afeto.
O levantamento envolve as seguintes categorias do painel: pai, mãe, irmã(o), padrasto/madrasta, companheiro(a), namorado(a), ex-companheiro(a), ex-namorado(a), tio(a), amigo (a), cunhado(a) e outros familiares.
Itaquaquecetuba foi a cidade que mais registrou denúncias, um total de 180. Foram 70 casos só envolvendo pessoas próximas. Em 119 denúncias, as vítimas tinham entre 40 e 49 anos.
Veja os números das outras cidades abaixo. Vale lembrar que Arujá, Biritiba-Mirim, Salesópolis e Santa Isabel não registraram denúncias no ano passado.

Rejeição, relutância e traumas
As denúncias registradas vão além de apenas números. Cada registro equivale a um momento de dor, medo, opressão e tristeza, que ficarão marcados na memória da vítima por toda a vida.
Há dois anos, um adolescente homossexual foi espancado pelo próprio pai em Itaquaquecetuba. Na época, a vítima contou ao g1 que estava se arrumando para ir ao Centro comprar uma capinha para o celular e os pais dele começaram a falar que ele não ia sair. “[Eles falaram] ‘Não vai sair para encontrar macho’. Eu ignorei, não costumo rebater o que eles falam. Quando eu estava saindo, minha mãe começou a falar mais ainda e meu pai começou a brigar também. Nisso, eu não aguentei e respondi”.
“Meu pai começou a vir atrás de mim com muita raiva e minha mãe disse ‘pode bater, pode quebrar’. Ele puxou minha mochila, me deu socos, me derrubou no chão e deu várias chutes na minha cabeça”.
Uma vizinha, que estava presenciando a cena, conseguiu parar o pai da vítima e levou o menino para dentro da casa dela. Por fim, o adolescente ligou para os sogros, que seguiram para a delegacia. A vítima teve ferimentos no rosto e um corte na mão.
Por conta da rejeição e da violência, muitas pessoas LGBTQIA+ decidem deixar a família de sangue “para trás” e trilhar um novo rumo. Isso aconteceu com a Juliana*, uma mulher trans heterossexual, de 56 anos, moradora de Mogi das Cruzes.
Ela conta que era considerada uma criança “afeminada” e, ao se comparar com o pai e o irmão, sentia uma diferença muito grande. “Eu ia muito no colo dos meus tios, eles eram referência para mim, eu tinha um carinho muito grande por eles. E, de uma hora para outra – por volta dos 9 anos, quando a voz da criança começa a mudar -, esse afeto foi completamente cortado. Eram críticas, pessoas virando a cara, eu não sabia o que estava acontecendo. Foi o início da LGBTfobia dentro da minha própria família”.
Segundo Juliana*, o silêncio da família machucava quem ela era. A dor se tornou tão grande que, aos 16 anos, ela foi embora da casa dos pais.
“A ignorância é uma violência. O preconceito velado é uma violência. É como se fosse uma violência física. Quando é físico, você ainda pode ter a chance de revidar. Quando é velado, você não fala sobre o assunto, você é atingido e fica sofrendo em silêncio. ‘Eu amo a minha filha, eu amo meu filho, mas se for trans eu não falo sobre isso, se for gay eu não falo sobre isso’. Que tipo de amor é esse? Essa pessoa está sofrendo muito! E ela não consegue falar sobre isso”.
Apesar de todos os enfrentamentos, Juliana* só se reconheceu como uma mulher transexual em 2018. “Passei mais de 40 anos naquele corpo. Isso me trouxe diversos problemas, inclusive doenças, eu fiquei mais de dez anos usando remédios psicoativos, porque eu me olhava no espelho e não me via. O espelho, para mim, era um terror, porque eu não conseguia me enxergar como uma pessoa. Foi um processo muito difícil. Depois que me reconheci como pessoa trans foi libertador, para a minha cabeça, para mim. Não dá para você ficar escondida sua vida inteira dentro de um casulo, criando e mostrando e vendendo a imagem de uma pessoa que não é você, isso é dor dupla, você não vai conseguir”, relata.
Outro caso de violência aconteceu com Marcos*, um homem cis pansexual, de 25 anos, morador de Mogi das Cruzes. Ele conta que, quando era pequeno, não pensava tanto em sexualidade. Entretanto, comentários sobre ele não ser tão “másculo” sempre surgiam na escola e em eventos da família.
“Quando cheguei no ensino médio, meu grupo de amigos era completamente formado por jovens da comunidade, com eles pude entender melhor questões de gênero e quem sou de fato. Meu jeito ‘não tão másculo’ fazia parte da minha essência e eu já não estava mais disposto a abrir mão disso”.
“Inclusive, já ouvi meu pai dizer ‘não basta ser preto, ainda tem que ser gay?'”, conta.
Entretanto, a liberdade que Marcos* tinha na rua não era a mesma que podia ter dentro de casa. “Meu pai via meu jeito de ser e me vestir como uma afronta à sua masculinidade, o que trouxe diversas brigas e traumas. Meus desenhos, meu cabelo grande, as músicas que eu ouvia, absolutamente tudo era motivo para gritos e ameaças”.
“Uma vez minha irmã sugeriu que pintássemos as unhas juntos, como não estava falando com ele [meu pai], imaginei que não seria um problema. Não esperava que esse fosse o gatilho para um surto. Quando meu pai viu, pegou nossa caixa de esmaltes e intercalou entre os que atirava com força em mim e os que lançava com força na parede. Fiquei tão em choque que não consegui dizer nada. Chorei de dor e de vergonha. Depois disso eu passei dias evitando ficar em casa por medo. Saía cedo de casa e voltava tarde, porque eu sabia que ele já estaria dormindo”.
Emocionado, Marcos* conta que, felizmente, a figura que um dia mais o trouxe medo, hoje em dia é um dos seus maiores guardiões. “Minha relação com meu pai é outra e acredito que muito disso é por conta da minha irmã. Ele não era agressivo com ela e, por isso, eles tiveram muitos momentos de diálogo em que ela pôde desconstruir os pensamentos problemáticos que ele carregava. Me sinto grato por ter uma irmã que esteve do meu lado. Mulher preta, forte e, assim como eu, pansexual”.
Felipe* também foi vítima de violência. Ele é um homem cis homossexual, de 25 anos, que morava em Ferraz de Vasconcelos com os pais e, por conta da opressão, decidiu se mudar para a capital.
Ele conta que tinha por volta de 17 anos quando, de fato, entendeu a própria sexualidade. “Meu medo era ser colocado para fora de casa, já que sempre tive um pai agressivo. Além disso, minha família tem o histórico de excluir pessoas homossexuais. Eu não queria que isso acontecesse, ainda mais sem saber se teria ou não uma rede de apoio. Então vivia uma vida dupla, entre a igreja e a minha sexualidade”.
“Quando minha mãe descobriu, disse que preferia ver o filho dela em um caixão do que com outro homem”.
Felipe* conta que o que mais sentiu e ainda sente falta é do acolhimento da família. “Foi um período muito difícil, vivi tudo calado, não tinha nem um amigo para compartilhar, todos os meus amigos eram da igreja e ninguém iria aceitar. Eu relutei muito [a minha sexualidade], fiz várias coisas que a igreja ensinava, só para ‘deixar’ de ser gay. Passei tudo sozinho. Quando eu entendi que nada que eu fizesse mudaria quem eu sou, criei um escudo”.
Para alguns, a liberdade de ser quem é não acontece nem fora de casa. Laura* é uma mulher cis bissexual, de 25 anos, e mora em Mogi das Cruzes. Ela conta que os pais são separados e que falou da própria sexualidade para a mãe quando tinha 19 anos. Já o pai descobriu quatro anos depois, quando tinha 23 anos.
“Eu comecei a namorar uma mulher – nunca tinha namorado mulheres antes. Minha mãe recebeu super bem, mas para o meu pai sempre foi uma questão eu gostar de mulheres. Um dia postei uma foto com minha namorada e o meu pai mandou para minha mãe, falando que eu era um ‘desgosto’ e que não queria falar comigo”, relata.
Laura* conta que, ao sair com a namorada, sentia medo de algum amigo do pai ver as duas na rua se beijando, de mãos dadas ou tendo algum outro tipo de contato físico. Por isso, sempre agia como se fosse “amiga” da companheira. “Eu também ficava pensando ‘cara, será que é isso mesmo que eu sou? Será que eu não sou nada disso que penso e estou confundindo minha própria cabeça? Será que é só uma fase? E ele sempre falava que Deus ia tirar isso de mim”.
“Isso me gerou tantos traumas que fiquei com medo até de me assumir para as outras pessoas. Ficava morrendo de medo do jeito que as pessoas na rua me olhavam, [ficava pensando] o que elas iam achar, o que poderiam fazer de ruim. Eu ficava me sentindo mal. Se meu pai fazia isso comigo, imagina as pessoas da rua? Eu sou filha dele, se acontecesse algo comigo por conta disso, eu não teria para onde voltar”.
*Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a identidade das vítimas.
‘Desumanização’ da pessoa LGBTQIA+ na sociedade heteronormativa
O pesquisador, professor adjunto da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutor em psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Gilson Gomes Coelho, explica que o processo de autoconhecimento de um ser humano é muito difícil. “A gente parte do pressuposto de que, na sociedade normativa em que estamos inseridos, todas as pessoas são heterossexuais – ou que ‘deveriam’ ser. E aí, em torno dessa questão genitália – no sistema binário sexo/gênero -, todas as pessoas que nascem com determinada genitália têm que desenvolver ou desempenhar um papel social específico, que não é determinado por essa genitália, mas sim pela cultura”.
“Quem nasce pertencendo à comunidade é oriundo de um casal dentro da norma [cis heteronormativa], então é uma luta constante pelo reconhecimento de humanidade. O processo se torna doloroso porque, primeiro, o indivíduo não tem modelos para seguir, ele se sente muito desconfortável por não ter essa base no núcleo familiar para se espelhar. A tristeza inerente é muito comum nesses casos porque o indivíduo sempre precisa estar pisando em ovos”.
Segundo Coelho, a sociedade é arquitetada e organizada para quem é heterossexual. Quem foge da norma acaba enfrentando inúmeras situações que acabam esbarrando em direitos básicos, já que a LGBTfobia produz uma expulsão cíclica de lugares extremamente importantes para a pessoa: ambiente familiar, escolar e até religioso. Isso impacta diretamente na forma como o sujeito compreende os seus direitos e faz com que ele entre em um ciclo de busca por aceitação.
“Se as vítimas são vistas como inferiores, elas são ensinadas a buscar aprovação, porque a insegurança reside, ela é presente, ela é crônica. O sucesso financeiro, na maioria das vezes, acaba funcionando como uma forma de comprar respeito das pessoas. Você tem que ser estudado, você tem que ser monogâmico, você tem que trabalhar… Então, nessa condição de inferioridade, há todo um esforço, contínuo, recorrente e ininterrupto, de provar, de lutar muito para ser tratado como igual – como tratam uma pessoa heterossexual, por exemplo”.
Para Coelho um grande combustível para a disseminação da ideia de “inferioridade” das pessoas LGBTQIA+ é a igreja – não a religião, mas sim a “instituição” não inclusiva. O pesquisador ressalta que o discurso religioso está muito presente atualmente [como justificativa à LGBTfobia], em torno da naturalização sobre conclusões infundadas sobre a bíblia.
“Durante muito tempo, a igreja foi uma grande detentora do capital. Não ter filhos heterossexuais era uma ameaça para a igreja, porque a igreja precisava recolher dízimo, tributos. Então, era interessante que os casais funcionassem dentro da perspectiva monogâmica e heterossexual. A partir do momento que a gente apresenta outras formas de relação e a não reprodução, isso é visto como uma ameaça à economia da instituição”, explica.
Entretanto, atualmente, o discurso é outro. “Se Deus criou tudo e ‘formatou tudo’ – de um jeito que é entendido e disseminado culturalmente como bom ou ruim -, quem está fora dessa perspectiva é tratado de forma diferente. A educação, dentro desses princípios, faz com que o outro não seja reconhecido como humano, então o sujeito perde o status de ‘humanidade’. Sendo assim, a igreja continua atuando para a manutenção da LGBTfobia de forma explícita”.
LGBTfobia disfarçada de cuidado
Coelho destaca que algumas tentativas de repressão [por parte da família em relação ao indivíduo] podem acontecer no intuito de proteger a pessoa de possíveis ataques ou situações de violência. Entretanto, em outros casos, a repressão acontece por conta da vergonha de serem vistos pela sociedade como pessoas que não exerceram “direito” a função de pais.
“Esses filhos são lidos por esses pais como insuficientes. Só que isso é inconcebível pela educação que a gente recebe moral e, especificamente, a religiosa. Como a gente não pode colocar os filhos nesse lugar de insuficiência de forma aberta, surge a necessidade de disfarçar. É um processo que parece cuidado, mas, na verdade, não é. É uma rejeição. Esse processo de impedir a expressão livre do outro de ser quem ele é machuca, é violento”.
“A violação de direitos está presente desde o momento em que o sujeito se reconhece como diferente do que é imposto pela sociedade. Então ele vai enfrentar desafios na escola, no trabalho. Se for uma pessoa trans, por exemplo, ele vai enfrentar nos serviços de saúde. A conversa de que ‘todos somos iguais perante a lei’ é uma mentira, porque os direitos não são iguais de fato”.
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Conhecimento e rede de apoio como ferramentas para quebrar a norma
A LGBTfobia não pode ser vista como um problema isolado ou individual. Segundo o pesquisador, ela é um mecanismo de violação e produção de ódio coletivo e estrutural. Então, o assunto precisa ser debatido em todos os lugares que o indivíduo frequenta. “Conhecimento é uma arma importante para a formação crítica dos indivíduos. O primeiro ponto para tentar mudar essa realidade é o fortalecimento de coletivos. Se a gente vive uma sociedade ‘um pouco diferente’, é por conta dos ativismos, de gente que deu a cara”.
“Não somos só um país LGBTfóbico, somos um país LGBTfóbico, racista e misógino. Não adianta dizer assim ‘ah, eu apoio, eu defendo uma pessoa LGBT’, mas, se na hora da luta ela não estiver ali, presente, ela já ocupou um lado, né? Neutralidade não existe. Então quando a gente não se posiciona diante de uma situação de justiça, a gente já ocupou um lugar”, enfatiza.
Coelho destaca que redes de apoio são extremamente importantes. As trocas de experiência, de conhecimento e a convivência fazem com que as pessoas possam se reconstruir em conjunto.
“O individual nunca está apartado do coletivo. Essas demandas são individuais, mas elas têm um fundo que não pode ser pensado de forma descolada do sujeito. Essa consciência, esse entendimento, o estudo da criticidade e a organização coletiva produzem, por si só, a luta, a militância. E isso, sem dúvidas, é fundamental para a reparação das nossas feridas individuais”, finaliza.
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