Grades e ‘carteiras’ de plástico: veja como funciona escola dentro de unidade da Fundação Casa


Rotina restrita e materiais recolhidos após aulas são algumas adaptações para garantir educação a jovens em medidas socioeducativas. O g1 foi à unidade Campinas e conversou com professores e internos. Grades e ‘carteiras’ de plástico: como funciona escola dentro de unidade da Fundação Casa
Com adaptações para garantir a segurança interna e uma rotina restrita, uma das unidades da Fundação Casa em Campinas (SP) mantém atividades escolares para 48 jovens que cumprem medidas socioeducativas.
O g1 foi até a unidade Campinas e conversou com professores e internos.
📲 Participe do canal do g1 Campinas no WhatsApp
Na escola que funciona na unidade Campinas, as lousas são pintadas ou feitas de placas de madeira afixadas nas paredes, seguindo padrão dos dormitórios e do refeitório: a base das estruturas de mesas, bancos e camas são feitas de concreto, por questões de segurança interna. Dentro das salas de aula, cadeiras e mesas de plástico são usadas como carteiras.
Portas são reforçadas e trancadas quando o ambiente não está em uso. De acordo com a Fundação, professores têm autonomia para definir as estratégias pedagógicas e não há proibição de materiais escolares. Também por segurança, os materiais são entregues antes da aula e recolhidos no fim.
A professora Carolina Schmidt Sutana dá aula na Fundação Casa há quatro anos, local onde teve a primeira experiência de trabalho em sala de aula. Ela conta que já foi questionada sobre o trabalho na unidade.
“As pessoas às vezes ficam com medo, né? De, ‘ai, você dá aula na Fundação Casa, nossa, mas não é perigoso?’, e muito pelo contrário. As aulas, no geral, são bem tranquilas”, afirma.
Estrutura e rotina
A unidade Campinas possui quatro salas de aula, duas destinadas para o ensino fundamental e duas para o ensino médio. Alunos de diferentes idades participam das aulas de acordo com nível de alfabetização e letramento.
Segundo a Fundação Casa, “a maioria dos jovens chega com defasagem escolar, muitos em situação de analfabetismo”.
O centro tem capacidade para 56 jovens, e 48 cumprem medidas no local atualmente. Eles se dividem em 14 dormitórios. A unidade também tem sala de informática com oito computadores, biblioteca, quadra poliesportiva, horta e galinhas que ajudam na manutenção das plantas.
Durante as aulas, os internos usam cadernos e outros materiais, como em qualquer ambiente escolar. Quando saem das unidades, podem levar cadernos e outros itens que foram produzidos enquanto cumpriam a medida socioeducativa.
Para os que concluem o ensino dentro da Fundação, é feita uma formatura. “[Acontece] junto com o almoço de final de ano, de Natal, mas aí são poucos os meninos que estão no terceiro ano do médio. Então, acaba sendo só uma cerimoniazinha mesmo”, conta a professora Carolina.
A rotina é restrita. Os internos acordam às 6h e participam das aulas das 7h às 12h20. No período da tarde, cuidam da horta e das galinhas e participam de atividades extracurriculares. O descanso ocorre a partir das 21h.
Desafios do ensino
Para a professora Carolina, parte dos desafios no ensino está relacionada às medidas para garantia de segurança da unidade.
“A ação pedagógica, às vezes, fica um pouco mais limitada no sentido de, por exemplo, levar os meninos pra um passeio. Não entrei aqui ingênua sobre essas limitações, mas que, infelizmente, como eles estão em medida, cumprimento de medida socioeducativa, acaba tendo essas limitações”, conta a professora.
Outro desafio é a resistência dos jovens em relação ao ensino formal e o ciclo de violência em que se encontram. “A violência, muitas vezes, é tudo o que eles conhecem. E fugir da violência é até, de certa forma, uma expressão de fraqueza, né? Nós tentamos mostrar outro lado da moeda”, reflete a professora.
Em relação aos materiais e tecnologias para complemento das aulas, Carolina conta que houve avanço. “A gente tinha bem poucos recursos tecnológicos, né? Televisão de tubo… A partir da reforma que teve, aí a gente começou a ter uma aparelhagem tecnológica melhor, o que ajudou bastante nas aulas, inclusive, porque a gente consegue projetar melhor, seja em pendrive ou com acesso à internet”, explica.
Avanços na aprendizagem
Dados da Fundação CASA apontam que, na região de Campinas, 83,19% dos jovens que cumprindo medidas tiveram avanço na aprendizagem em 2024, um total de 376 adolescentes. Em 2023, a taxa era de 34%, com 144 jovens progredindo.
A avaliação de progresso é estruturada em quatro níveis de alfabetização:
Analfabeto: dificuldade na decodificação de palavras e frases, além de não realizar operações matemáticas básicas.
Processo de Alfabetização I: reconhecimento de informações em textos curtos e realização de tarefas simples com números naturais.
Processo de Alfabetização II: compreensão de textos de extensão média e maior autonomia no uso de números naturais e decimais.
Plenamente Alfabetizado: leitura de textos longos, interpretação de informações complexas e resolução de problemas matemáticos que envolvem múltiplas operações.
As unidades também realizam oficinas de leitura e cursos profissionalizantes. Em 2024, a taxa de jovens certificados em cursos profissionalizantes na Fundação chegou a 95,5%.
Relatos de ex-internos
Miguel Faria Alves, de 23 anos, passou pela Fundação Casa duas vezes na adolescência. Quando entrou pela primeira vez, conta que o cenário parecia “de terror”.
“Era uma situação meio desconfortável porque tinha acabado de ter uma rebelião, ali, dos menores. Então, quando eu cheguei, a gente já tava de tranca. Passei três meses de tranca junto com outros adolescentes. Eu achei que ia ser aquilo, sabe? Pra sempre, até eu ir embora. ‘Tava’ a parede toda queimada, tipo um cenário de terror. Quando a gente saiu da tranca, eu pude ver que não era aquilo”, conta Miguel.
Ele lembra que, mesmo diante do cenário da rebelião, os professores “nunca desistiram”. “Sempre ‘tava’ lá, sabe, sem medo. Porque pelo cenário, você não vai querer entrar”, comenta Miguel.
Outro ex-interno, que prefere não ser identificado, conta que concluiu os estudos na Fundação e fez cursos que abriam possibilidades para empregos diferentes.
“Os cursos que eu fiz aqui dentro foi uma das maiores coisas que eu levei pra tudo que eu fiz na minha vida até hoje. Eu fiz curso de informática, fiz curso de pizzaiolo, fiz curso de chapeiro, fiz curso de desenvolvimento socioambiental, de criadores de eventos, fiz bastantes cursos. Eu consegui concluir a escola aqui dentro também. Eu consegui evoluir”, relembra.
Unidade da Fundação Casa, em Campinas (SP), possui sala de informática, biblioteca, quadra e horta.
Estevão Mamédio
Cadeiras e mesas de plástico são usadas como carteiras em unidade da Fundação Casa, em Campinas (SP).
Estevão Mamédio
VÍDEOS: saiba tudo sobre Campinas e Região
Veja mais notícias da região no g1 Campinas
Adicionar aos favoritos o Link permanente.