
Entre tintas e muros, artista convida população a perceber a fauna urbana e a considerá-la parte do espaço. Trabalho envolve também oficinais de expressão coletiva. Mural pintado pela artista em Presidente Prudente (SP)
Camila Rigatti
Uma conversa com um coró-coró, ave nativa do Brasil, mudou para sempre o modo como Bianca Habib enxerga a cidade. Moradora de São Carlos (SP), a artista visual e urbanista conta que tudo começou em 2013, quando se mudou para a nova casa e foi surpreendida pelo visitante emplumado – que na verdade, era um morador até mais antigo do bairro.
“Ele me perguntou: ‘Oi, você é a nova vizinha?’. E a partir dali, daquele chacoalhão de quem chegava num novo lugar que já era habitado, comecei a redirecionar meu entendimento de cidade, de habitat. E aí fiquei reverberando este chamado para perceber a natureza na cidade”, relembra.
Com animais como assunto, arte de arquiteta embeleza cidade de Ribeirão Preto (SP)
Arquivo pessoal / Bianca Habib
Desde então, Bianca passou a perceber e a destacar a presença da fauna urbana em seus trabalhos, levando para os muros e espaços públicos uma poética que convida ao reencontro com a natureza que também habita o ambiente urbano.
A partir de 2020, mergulhou de vez na arte como forma de expressão e, sobretudo, de transformação. “Fiquei reverberando esse chamado para perceber a natureza na cidade e passei a ecoar esse olhar para um habitat compartilhado entre humanos e outras espécies”.
Mural organizado pela artista e arquiteta
Arquivo pessoal / Bianca Habib
Além dos murais que colorem e transformam paisagens das cidades por onde passou, Bianca realiza ateliês abertos, onde conduz participantes por jogos poéticos e experiências coletivas. Cartazes, postais e outras intervenções são criados a partir da interação entre sua proposta e as expressões dos participantes.
“A proposta é autoral, mas a produção artística acontece de forma coletiva, em espaços institucionais, escolas, festivais ou no espaço público. Entendo estes ateliês como experiências participativas onde arte, cidade, educação e meio ambiente são campos sem fronteiras”, resume ela. Por trás de todas essas ações, existe o desejo de mudar a forma como as pessoas veem o mundo.
Bianca passou a destacar a presença da fauna urbana em seus trabalhos
Arquivo pessoal / Bianca Habib
“Acredito que a gente muda o mundo mudando a nossa própria relação com a vida. Eu sou urbanista, penso a cidade, sou artista, proponho formas de ver a vida, sou mãe, procuro criar as coisas que crio com a perspectiva de um futuro melhor, mas antes de tudo, sou humana, então também me sinto responsável por mudar a nossa perspectiva de atuação no mundo enquanto espécie.
Como nós, humanos, compreendemos a vida? Depende muito de que lugar estamos falando. Há agrupamentos, comunidades, povos que entendem bem as suas naturezas, mas há, massivamente, uma lógica urbana, produtivista, que gera uma separação entre cidade e natureza, entre ciência e consciência, e que produz cidades inconsequentes, onde humanos pensam sempre a partir das suas experiências e priorizam o valor econômico das coisas.
Ainda precisamos aprender a conviver entre diferentes espécies. E não acho que significa viver em harmonia, sem conflito, mas considerar que em toda negociação – sobre espaço, sobre território, sobre vizinhança, sobre inteligências – há outros seres, outras presenças, outras formas de viver o espaço urbano, diferente das humanas.
Quando eu penso que um bem-te-vi que nasceu na cidade é um ser tão urbano quanto eu, e que interpreta um mapa de um jeito diferente do meu, eu me abro para uma outra forma de entender a minha própria cidade. Para perceber que o espaço urbano também é formigueiro, colmeia, toca, ninho, túnel, casa, poste, apartamento, árvore, rio.
Então eu convido as pessoas a perceberem diferentes cidades no mesmo lugar, a criarem um novo olhar, um novo repertório, para mudarmos o jeito de ver, para mudarmos a forma de pensar e, portanto, de fazer cidade. Uma parte pensando num futuro melhor, mas entendendo esse mundo multiespécies que vivemos hoje mesmo, aqui”
O impacto dessas representações é perceptível. “Adoro quando alguém me chama pelas redes sociais para contar que viu um vizinho. As pessoas passam a ver os bichos como proponho nos ateliês, como vizinhos”.
Atêlie aberto com crianças realizado pela artista
Arquivo pessoal / Bianca Habib
Bianca acredita que a comunicação da vida vai além das palavras humanas. “A primeira vez que vi o coró-coró, ele acionou um monte de perguntas dentro de mim, que mudaram tudo. Às vezes, um encontro muda tudo”, diz.
É por isso que suas obras retratam bichos nativos, moradores da cidade, acompanhados de poesia e sutileza, como forma de provocar o estalo que dá início à mudança.
Em um de seus murais mais recentes, pintado na ciclovia do Rio Pinheiros, em São Paulo (SP), a artista pintou aves como quero-quero, biguá e garça. “Você olha para um desenho de quero-quero, e logo adiante, repara num casal com filhotes ali na grama. Depois percebe o som. A pintura faz um convite para olhar”, conta.
Bianca Habib é artista, mãe, arquiteta e urbanista pelo IAU-USP
Arquivo pessoal / Bianca Habib
Para o futuro, Bianca pretende ampliar ainda mais o alcance de seu trabalho. “Quero fazer uma exposição, reunir esses trabalhos que hoje estão espalhados no tempo e no espaço. Também tenho livros em projeto, porque os livros chegam em lugares onde as exposições não alcançam”, planeja.
Entre tintas, encontros e reflexões, Bianca Habib segue transformando a cidade em um espaço onde a arte cria pontes entre espécies – humana e não humanas – e onde o cotidiano ganha novos significados. Afinal, como ela mesma acredita, mudar a forma de ver é o primeiro passo para mudar a forma de viver.
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